(Itamonte, 2024)
O projeto ROCADA: criatividade rural para sustentar o céu acontece desde julho de 2024 e só foi possível se concretizar através de 2 prêmios do Ministério da Cultura: Prêmio Sergio Mambert e Lei Paulo Gustavo. O projeto está sendo desenvolvido no bairro do Campo Redondo, na cidade de Itamonte- MG – e é dividido em 4 núcleos integrados:
Horta
Lã
Marcenaria
Pintura
Núcleo criativo da Horta é voltado para a produção agroecológica de plantas que produzem corantes para o tingimento da lã e produção de pigmento para pintura. A horta conta com a consultoria do agrônomo Daniel Lara do Seival das Cores, sítio de produção agroecológica regenerativa. Este núcleo inclui atividades pedagógicas na horta escolar guiadas pela professora Luciene Fonseca.
Núcleo criativo da Lã desenvolve oficinas de capacitação para as artesãs da Cooperativa da Lã Mulheres Rurais da Montanha. Dentre as oficinas estão: feltragem molhada e feltragem seca, criação de bonecas, crochê, macramê, bordado, tecelagem, etc. As oficinas são gratuitas e abertas ao público e a intenção desse núcleo criativo é descobrir e despertar os talentos de cada participante. As mestras de ofício que participaram do programa foram: Helene Arthur, Carol Freitas, Cásssia Fonseca e Tamara Fonseca.
Núcleo da marcenaria é voltado para o restauro dos antigos instrumentos de beneficiamento de lã, criação de móveis adaptados para as necessidades das tecelãs e reforma da oficina da lã. Este núcleo conta com serviços de Martin Barbolini , Alípio Fonseca e Fabiano Fonseca.
Núcleo criativo da pintura natural. Este núcleo é coordenado pela artista Lívia Moura e é voltado para muralismo geotintas – tintas feitas à base de terra. Durante o projeto tivemos a oportunidade de receber a mestra Marcela da Terra que nos ajudou a aperfeiçoar as técnicas tradicionais de produção dos pigmentos. Em seguida, foi desenvolvida uma atividade com a escola pública local – da pré-escola ao ensino médio – onde os alunos foram convidados a pintas temas como fauna e flora da região com as geotintas na parede exterior do Centro Comunitário Rural do Campo Redondo. Esta pintura contou com a participação da artista local Dilza Fonseca e da professora Carol Montoanelli.
Este projeto é coordenado por Lívia Moura, gerenciamento de redes socias feitos por Tory Lua, design Verônica D’Orey, produção executiva Patrícia Rodrigues, Administração contábil e produção Lila Almendra e Karlla Asismos.
Por Lívia Moura
“ROCADA: criatividade rural para sustentar o céu” foi um dos projetos premiados pelo Ministério da Cultura pelo Ponto de Cultura VAV. Este projeto que está sendo desenvolvido no momento em que termino de escrever a tese de doutorado. “Rocada” é a quantidade de lã necessária para encher uma roca, uma metáfora de algo que junta muitos fios. De acordo com pensamento yanomami, expresso por Davi Kopenawa em “A Queda do Céu” (Albert e , 2015), quando os xamãs param de cantar, o céu corre o risco de desabar sobre nós. “Sustentar o céu” se refere a uma sabedoria ancestral yanomami que nos lembra que a conexão entre humanidade e natureza é essencial para a sobrevivência de todos os seres. No projeto “ROCADA”, buscamos resgatar e sustentar esta ligação por meio da criatividade e da economia circular. O objetivo do projeto é cultivar um futuro mais equilibrado, onde tradição e inovação caminham juntas para evitar a queda de nossos céus – um ato de resistência cultural e ambiental.
Com o início das atividades do projeto ROCADA intensificamos a busca por antigas rocas, teares, cardas e instrumentos para a confecção da lã na região. Com a verba começamos a restaurar estes equipamentos com os marceneiros Martin Barbolini e Alípio Fonseca e a pagar moradoras locais para dar oficinas para as cooperadas de beneficiamento da lã: Carol Freitas, Helene Arthur e Cassia Fonseca. Atualmente, a cooperativa da lã conta com 20 mulheres divididas entre o núcleo de beneficiamento da lã, tingimento e administração contábil: Juliana Fonseca, Regina Lúcia Fonseca O., Regina Fonseca A., Andressa Chaves Fonseca, Thayná Lara Lúcia da Silva, Beatriz Ferreira dos Santos, Julia Fonseca, Dulce Fonseca, Edmea Fonseca Paiva, Nelma Fonseca, Vanessa Fonseca, Maria Silva, Helena Fonseca, Helene Arthur, Marli Fonseca, Fabiana Ferreira dos Santos, Lívia Moura, Karlla Asimos, Juliana Fernandes , Cassia Diniz Fonseca e Lila Almendra.
O projeto ROCADA deu início também a uma horta agroecológica voltada para plantas que tingem, sobretudo, a anileira. Esta planta produz o pigmento e corante azul e é um dos processos mais complicados, tradicionais, difíceis, raros e prestigiados. Por conta do projeto Nascentes Criativas (aprovado pela Lei Rouanet), tivemos a oportunidade de receber Kiri Miyazaki, uma das maiores especialista no assunto do Brasil. A partir das orientações de Kiri, eu e Vanessa Fonseca (nativa do Campo Redondo que faz parte da cooperativa da lã), coletamos as sementes de anil no período certo da colheita. Em parceria com o agroecologista Daniel Lara, montamos uma horta agroecológica no bairro para que, no próximo ano, possamos fazer uma produção profissional de corante e pigmento azul natural para tingimento da lã, pintura de murais e quadros. Por iniciativa da presidenta da VAV, Luciene Fonseca, que também é professora da escola local, a horta do projeto ROCADA se estendeu para a escola, onde estão sendo feitas atividades educativas em torno de uma horta escolar.
Outro núcleo criativo viabilizado pelo ROCADA foi “Como pintar comunidades?”. Este projeto consiste em pintar com tintas naturais a fachada do Centro Comunitário Rural do Campo Redondo, envolvendo os alunos da pré-escola ao ensino médio da escola pública local, assim como artistas rurais ntivas como a Dilza Ramos. A partir do ROCADA também conseguimos trazer outra grande especialista em tintas naturais, a Marcela da Terra, que fez uma oficina sobre tinta para murais externos.
A falta de interesse inicial dos alunos da escola com a pintura, principalmente dos adolescentes, deu lugar ao entusiasmo. Algumas semanas antes do projeto, passei nas turmas para perguntar quem gostaria de participar de um curso gratuito de produção de pigmentos naturais, dentre outras atividades como marcenaria, agroecologia, lã, etc. Junto com este oferecimento, expliquei da importância de preservar tradições, de não vender as próprias terras, de fazer o seu próprio empreendimento, da vida comunitária, da preservação do meio ambiente, etc. Fui recebida pelos alunos com uma grande apatia. Es alunes não demonstraram muito entusiasmo.
Entretanto, conversando com a professora de artes Carol Montoanelli, ela adorou a ideia de pintar o centro comunitário com os alunos e integrou esta atividade no currículo de artes, valendo ponto. Isto obrigou os jovens a ter que participar da pintura. Es alunes da escola, antes da pintura, estavam muito resistentes, seja por falta de interesse, seja pela sensação de que não seriam capazes. Entretanto, a participação deles gerou situações visíveis de entusiasmo, empolgação e apreciação pelos pigmentos naturais. Além de ter sido reportado à mim que foi dito no conselho de classe, por todas as turmas, que essa foi uma atividade muito apreciada. O que inicialmente era uma mistura de medo e apatia, se tornou uma atividade muito divertida e a qualidade do resultado surpreendeu a todes.
Este projeto teve a parceria de Chrystalleni Loizidou (citada no Ato 1, capítulo 3, livro 1), que esteve em residência artística no Ponto de Cultura VAV através de fundos do Ministério da Cultura do Chipre. O tema da sua pesquisa como residente tinha o título “What does radical childcare look like?” (Como seria uma criação infantil radical?). Este projeto também pode ser considerado um jogo-ritual comunitário: colher os pigmentos na natureza com as crianças, reapresentar as tintas naturais para as pessoas locais (que deixaram de usar este recurso), produzir as tintas, criar um painel coletivo, etc. E, assim como todos os jogos-rituais da VAV, ele serve para me reconstruir, reconstruir uma paisagem e os seus atores. E, neste caso, também será uma exposição permanente no coração do bairro: o Centro Comunitário Rural do Campo Redondo.
Ao lado do Centro Comunitário estão diversas construções tradicionais portuguesas coloniais brancas e azuis: a Igreja e as casas da escola. Pintar algo diferente disso é um bocado ousado. O recado que recebi de um morador quando começamos a pintar (e parecia que ia ficar horrível) foi: se ficar feio, amanhã eles pintam de novo de branco. Eu tinha sobre mim a pressão de ter que fazer algo que agradasse a comunidade, mas também tinha uma pressão interna que só faria sentido para mim se essa pintura fosse um processo coletivo e inclusivo e não só para pessoas “talentosas”.
Muitos moradores e até professores orientaram a gente a chamar para a pintura somente es alunes artistas, com talento e que não deveríamos excluir crianças muito pequenas ou com algum tipo de autismo/deficiência. Afinal, isto poderia destruir a composição final da pintura. Entretanto, eu e Chrystalleni promovemos um método de participação onde todas as crianças e adultes que quisessem se envolver seriam bem- vindes. Este sempre foi o método da VAV e dessa vez não foi diferente. O tema que escolhemos para a pintura foi plantas, árvores, frutas, flores e bichos da nossa região. Organicamente, fomos entendendo como orientar as diferentes idades das turmas da escola, formando grupos pequenos para que as crianças pudessem escutar e seguir as orientações sobre como usar a tinta, os pincéis e participar da composição da pintura de maneira harmônica.
As crianças e adolescentes começaram desenhando um rascunho na parede com lápis, depois pintando por cima e por fim a gente ia harmonizando as pinturas feitas e contornando com a cor do fundo (amarelo ou rosa) as manchas e respingos. Em geral, não era a mesma pessoa que desenhava e depois pintava, portanto, a mesma árvore, planta ou bicharada era constantemente recriada até ficar pronta.
A maior dificuldade que encontrei neste processo foi o limite entre deixar rolar e conduzir, ou seja, harmonizar a pintura com o gosto tradicional local e deixar as pessoas se expressarem. Esse foi um importante aprendizado, onde tive que me posicionar e me colocar no lugar da especialista que sou na área da pintura entre as pessoas nativas. Como a escola não tem muros, dezenas de crianças vinham pintar ao mesmo tempo. As crianças da pré-escola, por exemplo, estavam sempre ansiosas para participar e, inicialmente, eu não sabia o que fazer com elas, só pedia para esperarem a professora delas chegar. Eles estavam se contendo para não atacar a parede, mas não paravam de misturar as tintas. Até que tive a intuição de oferecer o rodapé das paredes para eles fazerem o que quiserem. Afinal havia um impasse entre as pessoas sobre qual cor seria pintado o rodapé e, por fim, ficou lindo com todas as cores e rabiscos feitos pelas crianças pequenas.
O resultado foi uma pintura coletiva muito admirada pelos moradores, totalmente diferente das construções tradicionais ao redor. Concretamente e simbolicamente, a pintura fez com que cada um sentisse que tinha um pedacinho de si ali, fortalecendo os laços do centro comunitário com a comunidade (o que nem sempre é fácil) e o meio ambiente. Além disso, fizemos uma bela propaganda das tintas naturais.
Como pode ser visto neste estudo de caso, muitas atividades estão em andamento e não é possivel ter um distanciamento para entender o que elas significarão e onde elas vão dar. Estamos imersos em processos férteis, que desejo que se desdobrem com autonomia criativa e sustentabilidade tanto econômica, quanto ambiental, afetiva, física, comunitária, etc.
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