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Pandora Ritrovata

(Itália, 2011/2012)
Em 2011, quando a VAV ainda não se chamava VAV, Lívia Moura incubou um dos seus primeiros projetos envolvendo 35 mulheres ceramistas do sul da Itália. Hoje em dia, o projeto conta com mais de 200 mulheres e permanece mais ativo do que nunca.
Estudo de caso
Por Lívia Moura
O primeiro projeto de arte engajada que desenvolvi a partir do resgate de mitologias pré-patriarcais foi Pandora Ritrovata (2011 e 2012) também na região da Campania, sul da Itália. O projeto se tratava de um processo em prol do fortalecimento de mulheres diante de dinâmicas machistas que nos rodeavam. Neste período, eu morava num vilarejo (Raito) conhecido pela tradição da cerâmica na Costiera Amalfitana. Comecei o projeto porque eu frequentava vários laboratórios da região e observava o lugar oprimido que as mulheres ocupavam neles. 

Naquela época, eu tinha 25 anos, estava casada com um italiano local e trabalhava de baby-sitter. Queria voltar a fazer obras de arte e os projetos de arte engajada que desenvolvia na Casa Daros. Entretanto, não tendo dinheiro e engajamento no mundo da arte contemporânea local, eu fiz amizades com ceramistas de diferentes laboratórios da região para que eu pudesse ter acesso aos seus meios de produção.  Para não abusar muito de cada um, cada parte do processo da cerâmica eu fazia num laboratório. Frequentando esses espaços, eu comecei a observar, como num espelho, a situação das mulheres ceramistas que trabalhavam naqueles laboratórios. Elas eram majoritariamente esposas ou filhas de ceramistas reconhecidos e, em certos casos, assinavam suas obras com o nome deles. Isso também ocorria, em projetos que eu vinha desenvolvendo junto ao meu marido.

A escolha de trabalhar exclusivamente com mulheres ceramistas foi uma escolha poética e metalinguística: nós, participantes, continuávamos a desenvolver o próprio trabalho cotidiano e ao mesmo tempo analisávamos a nós mesmas e a contemporaneidade. Eu precisava formar esse grupo, era algo que me fortalecia e que, certamente, fortaleceu elas também. Em 2023, ao voltar para a cidade de Salerno, onde eu havia começado o projeto há 11 anos atrás, fiquei sabendo que o grupo estava super atuante e que elas se encontravam naquele momento em Cuba no “Matres Havana Festival”.

O projeto inicial contou com 35 mulheres ceramistas da região da Campanha dentre elas:  Adele di Domenico, Annarita Viscido, Antonella Sergio, Chiara Sassone Corsi, Clara Garesio, Elisa D’Arienzo, Federica D’Ambrosio, Filomena Cioffi, Floriana Gigantino, Laura di Santo, Lauretta Laureti, Leena Lehto, Lívia Moura, Loredana Avagliano, Mariagrazia Cappetti, Maria Sabetti, Maria Scotti, Nathalie Figliolia, Paola Scafuri, Patrizia Marchi, Pina Rubino, Roberta D’Aquino, Rossella Lambiase, ROsa Cuccurullo, Rosa Salsano, Sharareh Shimi, Silvana Napoletano, Sofia De Mas, Teresa Salsano e Ellen G.

Um ano depois do projeto inicial, já haviam mais de 100 mulheres envolvidas. Anna Rita Fasano, que trabalhava na prefeitura da Salerno, foi uma das pessoas que convidei para co-criar o projeto inicial comigo e foi ela que seguiu tocando o projeto em frente até os dias atuais. 

Nos encontros que promovi na época, eu conversava sobre a teoria da origem da cerâmica como parte de uma revolução feminina que ocorreu no período neolítico, junto com a agricultura e a tecelagem. Conversava também sobre a origem do mito de Pandora (descrito no Ato 1 do capítulo 3 do livro 1) e como a misoginia foi sendo forjada no nosso imaginário coletivo por conta de interesses políticos. No texto para o catálogo, eu explicava a dimensão processual desta obra de arte relacional:

“Todos os encontros, reflexões e sentimentos têm a mesma importância para a construção dessa obra de arte, assim como a exposição, o seminário e o catálogo. Todos esses elementos são interdependentes e se relacionam entre si com a finalidade de redesenhar o imaginário coletivo. (…) Espero que os laços criados durante a realização do projeto possam continuar a se desenvolver em redes de relações colaborativas infinitas, da qual a forma futura nós não podemos nem imaginar…”                                                           (Moura, 2012:14)

Detalhe do catálogo do projeto Pandora Ritrovata. Fonte: MOURA, Lívia. Pandora Ritrovata: il mito riconquistato, Vendo Ações Virtuosas, Salerno: Gaia, 2012. p. 46-47
Projeto do catálogo Pandora Ritrovata. Fonte: MOURA, Lívia. Pandora Ritrovata: il mito riconquistato, Vendo Ações Virtuosas, Salerno: Gaia, 2012. Fonte: arquivo VAV.

O processo de construção deste projeto, assim como todos os outros que irei apresentar a seguir, não estão separados da minha construção pessoal de vida. Durante o projeto Pandora Ritrovata eu me tornei o próprio vaso divino: fiquei grávida do meu primeiro filho. Estava também, assim como as narrativas que trazia, desconstruindo dentro de mim o patriarcado que me oprimia, ao mesmo tempo em que reinventava (e reencarnava) resgates de mitologias pré-patriarcais com um corpo coletivo de mulheres. 

Durante o desenvolvimento do projeto, em 2011, tive um encontro com a secretária de cultura do município de Salerno para pedir apoio. Durante este encontro, escutei a seguinte frase: “Eu adoro trabalhar com mulheres”, neste momento eu me entusiasmei, mas logo em seguida ela falou: “porque as mulheres trabalham de graça e os homens, não”. Eu saí da reunião me sentindo violentada. Apesar de ter envolvido muitas pessoas e prefeituras locais, nunca recebi nenhum tipo de remuneração pelo projeto que durou mais de 1 ano de pesquisas, reuniões, divulgação na imprensa local e atividades públicas. Somente durante a gravidez comecei a perceber de verdade a violência que o sistema patriarcal exerce sobre um corpo potentia mater. Este contexto me trouxe ainda mais interesse em entender sobre as raízes das narrativas misóginas no mundo atual. Narrativas que são utilizadas pelo senso comum para justificar a veracidade “biológica” ou “natural” de seus conteúdos.

Aparentemente, as mulheres envolvidas no projeto eram menos talentosas que seus homens ceramistas. Entretanto, escavando um pouco, era evidente que isso não era verdade. O que faltava para elas era espaço, auto-estima, recursos e reconhecimento. A simples informação de que a cerâmica teria sido inventada por mulheres, chacoalhava o imaginário machista local. Muitos homens me contestavam impacientes citando os antigos oleiros do período grego helenístico patriarcal – muito mais recentes do que as primeiras ceramistas que eu me referia. Uma das atividades que propus – como ato de pedagogia radical – foi organizar o que se tornou (segundo me foi informado) a primeira exposição só de mulheres ceramistas do sul da Itália. A abertura da exposição reuniu o apoio de algumas províncias da região e contou com mais de 500 frequentadores, uma exposição coletiva das obras das ceramistas, queima primitiva de cerâmica na fogueira, seminário, música medieval, o lançamento do nosso catálogo, dentre outras atividades.

Convite da exposição e lançamento do catálogo do projeto Pandora Ritrovata, Vendo Ações Virtuosas, Campanha, Itália, 2012. Fonte: arquivo VAV.

Uma dinâmica que propus e que dura até hoje, foi criarmos projetos de cerâmica coletivos, como um contraponto ao corrente isolamento e competição entre ceramistas – sobretudo entre mulheres que estavam à sombra dos homens. Nestes projetos, pensávamos juntas uma escultura coletiva com módulos separados onde cada uma criava uma parte em cerâmica formando uma instalação ou escultura conjunta. Como pode ser visto nas imagens do Matres Havana Festival, e diversos outros projetos presentes no facebook delas, este modo de trabalhar continuou sendo desenvolvido ao longo desses anos.

No projeto Pandora Ritrovata, eu dei às ceramistas o que já era delas, como um reflexo de mim mesma e este é o motivo deste projeto ter se sustentado ao longo de tantos anos. Assim como todos os outros projetos sociais da VAV descritos mais adiante, eu descubro (no sentido de desvendar) a minha própria potência através de um empoderamento coletivo, consciente de que a minha libertação e o meu desabrochar só pode se dar em comunhão. Libertar-se sozinha é uma ilusão, pois enquanto as estruturas de opressão estiverem ao nosso redor, mais cedo ou mais tarde elas irão bater na nossa porta para nos oprimir e nos convocar a resistir. As emergências climáticas e sanitárias estão aí para nos mostrar isso. Incluindo neste processo as estruturas de opressão que carregamos dentro de nós mesmes, que castram a nossa potência vital e nos fazem castrar a potência alheia. Libertar-se é sair da lógica oprimido-opressor, buscando uma outra via.

Registro das ceramistas do projeto Pandora Ritrovata desenvolvendo seu primeiro projeto de instalação coletiva, atelier de Daria Scotto, Vendo Ações Virtuosas, Vietri Sul Mare, Itália, 2012. Fonte: arquivo VAV.
Registro das ceramistas com um projeto de instalação coletiva, Associazione Pandora Ceramiste, Matres Havana Festival, Havana, Cuba, 2023. Fonte: Facebook Associaziona Pandora Ceramiste

Acredito que a gravidez do meu primeiro filho, Teo, desfez muitos “feitiços” patriarcais que me acossavam. Talvez, por motivos físicos e hormonais mesmo, me senti mais bicho, mais selvagem, mais potente e mais criativa, entrando em contato com meus desejos vitais reprimidos. Isso me fez sentir uma vontade atávica de retornar ao meu país natal após 4 anos morando na Itália. Por conta disso, me afastei do projeto Pandora Ritrovata e deixei que a liderança local tocasse ele adiante.

No ano seguinte ao projeto Pandora Ritrovata (2013) criei, no Rio de Janeiro, o coletivo Vendo Ações Virtuosas, justamente para promover dinâmicas feministas, coletivas e co-autorais. Entretanto, durante a minha ausência da Itália, houve uma racha no grupo, pois estavam sendo promovidas atividades que não correspondiam à visão política de todas as participantes (inclusive a minha). Uma delas, por exemplo, foi uma exposição que um político local convidou as “pandorinhas” para participar. Algumas ceramistas se recusaram a participar desta exposição porque ela celebrava o embarque dos americanos na segunda guerra mundial. 

No outro ano, quando voltei para a Itália e tive que passar mais um ano na região, não quis me intrometer no fluxo do movimento, pois o projeto estava indo de vento em popa. Somente pedi para que elas não usassem o nome inicial (Pandora Ritrovata) para que eu não tivesse que ser responsabilizada (injustamente) pelos caminhos que seriam tomados pelo movimento. A partir de então, foi fundada a Associazione Pandora Ceramiste que, pelas postagens nas redes sociais de 2025, permanece mais ativa do que nunca (facebook: Associazione Pandora Ceramiste).

Por mais que tenha havido este racha e algumas ceramistas tenham decidido se retirar do projeto, eu fico muito feliz por este “filho” ter crescido e ganhado o mundo com autonomia criativa. É possível que, se eu tivesse tentado controlar o andamento do coletivo e impor minhas ideias, ele teria morrido. A maternagem em sua maior potência é também o exercício de chocar/incubar projetos, promovendo a sua autonomia criativa, confiando na bússola interna dos projetos e atuando como um útero que dá contorno para o feto crescer e depois o expulsa de si. Por mais que o parto doa, os filhos não são da mãe, eles são do mundo.

Mais fotos do projeto

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