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O Banco do Afeto

(On-line, 2020/2021)
Estudo de caso
Por Lívia Moura
Com o intuito de criar uma dinâmica – artística, pedagógica e social – que pudesse encarnar as especulações da VAV, em 2020 (ainda no Rio de Janeiro), comecei a criar – junto com a mentoria de Júlio Monteiro e a webdesigner Amanda Leite – uma plataforma digital para circular um sistema monetário de crédito mútuo com uma moeda chamada Afeto. Após inúmeras reuniões criativas envolvendo integrantes da VAV e diversos artistas, o Banco do Afeto nasceu na segunda lua cheia de 2021.  Estavam presentes no lançamento da moeda performando de maneira on-line: Iracema Pankararu, Júlio Monteiro, Ravi Brasileiro, Anna Costa e Silva, Juliana Alecrim, Janaina Fellini, Mareu (Maria Euvira), Maria De Los Vientos, José Bárrickelo, Janete Anderman, Letícia Mattoso, Joana Caetano, Rebecca Ramos, Lila Zavv e eu.

Lançamento da Moeda Afeto, Vendo Ações Virtuosas, Mareu no ritual on-line de lançamento da moeda afeto, print da tela do vídeo no canal do youtube, 2021. Fonte: Link: https://www.youtube.com/watch?v=ffbXvr0V2wY , pesquisado em: 6/6/2022
Lançamento da Moeda Afeto, Vendo Ações Virtuosas, Mareu no ritual on-line de lançamento da moeda afeto, print da tela do vídeo no canal do youtube, 2021. Fonte: Link: https://www.youtube.com/watch?v=ffbXvr0V2wY , pesquisado em: 6/6/2022
Lançamento da Moeda Afeto, Vendo Ações Virtuosas, Iracema Pankararu no ritual on-line de lançamento da moeda afeto, print da tela do vídeo no canal do youtube, 2021. Fonte: Link: https://www.youtube.com/watch?v=ffbXvr0V2wY , pesquisado em: 6/6/2022

É importante ressaltar que esta moeda surge em plena pandemia, num momento em que estávamos necessitando fortemente do encontro virtual para promover qualquer tipo de troca humana. O ritual de lançamento foi, portanto, esse evento on-line com apresentações de artistas de diversas localidades do Brasil.  

O Banco do Afeto durou 10 meses e se configurou como uma plataforma digital onde circulava uma moeda complementar ao Real. Neste caso, a moeda não tinha lastro e não pretendia substituir a moeda oficial, mas criar novas possibilidades de trocas durante a pandemia. A regra do jogo-ritual desta moeda era organizada em trocas de crédito mútuo. O crédito mútuo é um sistema de economia circular onde todos recebem inicialmente a mesma quantidade de moedas ao postarem a mesma quantidade de serviços na plataforma. A intenção deste tipo de regra de jogo não é quem acumula mais dinheiro, como num sistema yang, e sim quem consegue da melhor maneira equalizar o dar e receber. O objetivo do sistema é que ele fique girando em torno do zero, ou seja, todos devem estar, mais ou menos, dando e recebendo de uma maneira equilibrada. O crédito mútuo proporciona escambos multilaterais onde um compra do outro, gerando um equilíbrio entre demanda e oferta.

Como funciona o crédito mútuo?

Explicação visual de como funciona o crétido mútuo, Vendo Ações Virtuosas. Fonte: design Amanda Leite, arquivo VAV.

A ideia de criar moedas yin não é substituir as moedas yang, mas colaborar para o desenvolvimento de uma agroecologia monetária: várias moedas se complementando, cada uma com um propósito diverso para satisfazer necessidades diversas. No caso do Banco do Afeto, o propósito era promover a libertação do imaginário e a reciclagem das emoções. E também promover um sistema virtuoso de economia solidária – que irei apresentar mais adiante. O Banco do Afeto não promovia trocas de produtos, serviços rotineiros e necessários para sustentação da vida cotidiana – comida e serviços básicos – como outras moedas sem lastro pretendem promover- como a MUDA (www.muda-oe.com). Os participantes do Banco do Afeto eram convidados a participar de uma experiência artística – desde a criação do seu anúncio ao pagamento em Afetos, até os produtos adquiridos – promovendo situações afetivas, inusitadas, profundas, divertidas, subversivas, poéticas e engraçadas. O simples fato de ler os anúncios já era uma experiência artística.

Durante os meses em que o Banco do Afeto esteve ativo, foram mais de 130 pessoas inscritas na moeda e mais de 60 anúncios postados. Os anúncios da plataforma criaram uma linguagem artística própria, misturando um tom (irônico) de anúncio capitalista com arte relacional terapêutica. Por Afetos você poderia comprar uma “Felicidade inesperada na sua vida” (Juliana Lima Lincoti), ”Fofocas e conversas com pessoas solitárias” (Preta Evelin), “Serenata sem compromisso” (Letícia Santos Rocha), reciclar suas emoções de diversas formas, medir o seu nível de  riso-metria (Tânia Alice), “Conversas antes de dormir” (Anna Costa e Silva), “Fazer um pedido para ciganos” (Thallyssiane), fazer uma sessão de thetahealing, reiki ou florais de Bach, encontrar perdão para suas dívidas (Lívia Moura) assim como aprender a jogar vários tipos de baralho, receitas culinárias, alguém para ouvir seus áudios longos, comentar séries ou ter companhia para jogos. Estes produtos verdadeiramente promoveram o que prometiam, ao contrário do capitalismo que promete alegria, mas está te envenenando de refrigerante.

Felicidade inesperada na sua vida, Juliana Lima Linoti, anúncio no Banco do Afeto, Vendo Ações Virtuosas, 2021. Fonte: antigo domínio do Banco do Afeto, arquivo VAV.

Anúncio: Felicidade inesperada na sua vida

Vendedora: Juliana Lima Linoti

Valor: 500 Afetos

Descrição:

Se você está se sentido cansada, desanimada, entediada, sem disposição para nada, eu te ofereço o serviço de felicidade inesperada na sua vida.

Funciona da seguinte maneira:

1) Você contrata este serviço por 500 afetos;

2) Responde ao questionário da felicidade no qual você vai me informar algumas de suas preferências e dados de contato;

3) A partir dessas informações e outras que eu venha a pesquisar por conta própria, vou elaborar uma experiência exclusiva para você,
realizada sem aviso prévio, que tem como único objetivo te fazer feliz.

Contrate já o seu serviço porque felicidade não se compra, mas se troca por AFETO!

Soube que através do Banco do Afeto Letícia Rocha vendeu uma “Serenata sem compromisso” para a Tânia Alice e ela foi realizada de modo on-line para um grupo de performance com animais (o grupo Petformance da aula de Tânia Alice na UniRio, Instagram: @petformance). As músicas tinham sons e palavras que os animais curtiam, que haviam sido previamente indicados para a vendedora da serenata. Os relatos deste acontecimento foram simplesmente hilários.

Certamente, o grupo Performers Sem Fronteiras (outro grupo organizado pela artista Tania Alice, Instagram: @performerssemfronteira) ditou o tom dos anúncios da plataforma. As práticas de arte relacional promovidas por eles se encaixaram perfeitamente à plataforma, promovendo um ar engraçado e leve que inspirou outros anúncios, provocando trocas de cuidado e afeto, onde amizades reais foram tecidas.

Trago na parte de Jogos-rituais o livreto: “Reciclagem das Emoções”, um dos produtos vendidos no Bando do Afeto feito pelos estudantes de graduação de artes da UFF – que foram meus alunos no estágio de docência do doutorado.

Entretanto, no início de 2022, após 10 meses de intensa dedicação voluntária para promover esta plataforma, decidi encerrá-la. Por conta da quantidade de usuários, o valor mensal do custo da plataforma tinha chegado a mais de 200 reais por mês. Utilizávamos a plataforma Cyclos, um software de código aberto, que cobra em dólar para o cliente personalizar a plataforma e utilizá-la. Entretanto, a intenção não era cobrar nada dos usuários e eu vinha, justamente, refletindo desde o início deste empreendimento que seria uma contradição uma plataforma que promovia uma moeda sem lastro nenhum em Reais custar tanto em Reais para se manter (além de muito trabalho voluntário). 

Além disso, uma das intenções do Banco do Afeto era tirar as pessoas das redes sociais hegemônicas e promover uma maior diversidade, artesania e liberdade de expressão, sem manipulação e vícios promovidos pelas grandes redes sociais. Entretanto, por conta das limitações do software Cyclos e do poder hegemônico destas mídias concorrentes, era necessário ativar essas outras plataformas para divulgar o projeto e as pessoas se comunicarem (telegram, whatsapp, instagram, facebook, gmail, etc).  Administrar estas plataformas é um trabalho em si e demanda um profissional competente e bem remunerado (que não era o meu caso).

Prevendo os problemas econômicos, eu já havia pensado desde o início num sistema que chamei na época de “Bolsa de Valores Éticos” para sustentar a plataforma. Neste sistema, pessoas que apoiassem em Reais projetos de arte socialmente engajada cadastrados na nossa plataforma, ganhavam créditos em Afeto. Um pequeno percentual disto iria para a manutenção da plataforma e o resto para os projetos sociais. Em contrapartida, os projetos sociais também ofereceriam anúncios na plataforma. A ideia é que o sistema fosse circular: todos os envolvidos – doadores, projetos sociais e usuários em geral – davam e recebiam algo, gerando um equilíbrio no sistema. Além do mais, a ideia era envolver também o mercado de arte, onde um percentual da venda das obras fosse para estes projetos de arte socialmente engajada. A ideia com isso era também dar visibilidade a estes projetos sociais, que foram selecionados por sua qualidade social e artística, como era o caso do projeto de hortas indígenas urbanas medicinais de Niara do Sol.

Gráfico do funcionamento do sistema da Bolsa de Valores Éticos do Banco do Afeto, Vendo Ações Virtuosas, 2021. Fonte: antigo domínio do Banco do Afeto, arquivo VAV.
Registro de Niara do Sol em seu projeto de horta urbana indígena Hortas do Sol 2020. Fonte: antigo domínio do Banco do Afeto, arquivo VAV.

O tempo de duração da moeda Afeto dentro do Banco do Afeto foi o tempo possível de sua duração naquelas condições. Afinal, o sistema da Bolsa de Valores Éticos para o financiamento de projetos sociais e da plataforma funcionou muito pouco. Eu não tinha recursos econômicos e rede de conhecimentos suficientes para levantar todo o complexo sistema da Bolsa de Valores Éticos. Além disso, não consegui convencer os poucos galeristas de arte que eu tinha contato a participar dele. Para que toda esta engrenagem girasse, seriam necessários investimentos econômicos grandes por um longo tempo e isso não era viável. Era um projeto muito mais ousado do que minhas capacidades naquele momento. 

Entretanto, diversos aprendizados e reverberações, processos artísticos e pedagógicos se deram por conta do Banco do Afeto. Durante o período de pré-lançamento da moeda e os 10 meses de atuação fui convidada por muitas pessoas, grupos e instituições para falar sobre a moeda Afeto, sobre moedas complementares, sobre economia do amor incondicional e os temas abordados nesta tese. Numa delas, em 2020, ainda na pré-produção da moeda, desenvolvi uma conversa on-line com a curadora Gabriela Davies e meu orientador Luiz Guilherme Vergara numa live oficial da ArtRio (Feira de Arte Internacional do Rio de Janeiro). No momento, as ideias que propus para o mercado de arte – de lançar um selo para obras que participavam de um sistema monetário virtuoso – não tiveram repercussão alguma. 

Existe, nas feiras de arte, um selo que grandes museus colocam ao lado de obras de arte com o intuito de atrair colecionadores que queiram doar uma obra específica ao museu. Este selo acaba sendo um prestígio para o artista e a sua obra. A ideia, neste caso, era criar um selo que conferisse prestígio à obra por ela ter sido selecionada para apoiar um projeto social. 

O sonho não se materializou. Entretanto, 3 anos depois, em 2023, Gabriela Davies e sua parceira, Maíra Marques, criaram o projeto COMADRE (Instagram: https://www.instagram.com/comadre.art/) onde desenvolveram um selo que foi colocado ao lado de obras que apoiavam projetos sociais nas feiras de arte.  Eu não teria contatos e capacidade de me inserir no circuito do mercado de arte para fazer esta ideia emplacar, coisa que as curadoras-artistas do COMADRE tinham.

No ano de 2023, a COMADRE fez diversas exposições e selecionou obras de artistas nas feiras para destinar um percentual ou todo o valor da obra para projetos sociais ligados, sobretudo, à saúde da mulher, aborto seguro e empoderamento feminino. COMADRE é um projeto que estabelece novas relações dentro do mercado de arte. Me senti frustrada pelo sistema monetário da Bolsa de Valores Éticos não ter se materializado como eu havia programado, mas fiquei feliz ao saber que ele germinou em outro lugar, com outros contornos.

Em 2024 tive contato com as coordenadoras do recém inaugurado projeto Casa Seva em São Paulo, um dos poucos voltados para a sustentabilidade no circuito de artes. Em conversa com Carolina Pileggi, ela falou da intenção de destinar um percentual das vendas das obras para plantar árvores, de usar somente embalagem biodegradáveis ou reutilizáveis para o transporte das obras e papel semente para imprimir o texto curatorial. Estes dois exemplos são duas das inúmeras maneiras do circuito de artes se envolver com questões sociais e a crise climática. Independente da quantidade de impacto positivo que isso irá gerar, o circuito de arte é um grande influenciador e precisa dar bons exemplos que possam ser seguidos por outros setores.

Voltando aos aprendizados que tive com as falhas do sistema da Bolsa de Valores Éticos do Banco do Afeto. Ao final, concluí que as empresas e pessoas privadas já pagam impostos (ou deveriam pagar) e, no caso, eu estava inventando um imposto extra. Algum tempo depois (2023), em Minas Gerais comecei a estudar com a Patrícia Rodrigues o sistema da lei Rouanet, junto com a conformação da VAV daquele momento – Acauã Ferreira, Leticia Mattoso, Joana Caetano, Rita Fonseca e Regina Vassimon. Neste momento, entendi que a lei Rouanet é um sistema muito parecido com o que eu pretendia “inventar”: um percentual do imposto de renda que a empresa deveria pagar para o governo pode ser destinado a projetos sociais, que são aprovados pelo Ministério da Cultura através da lei Rouanet. 

Ou seja, neste caso não é um valor extra que a empresa ou a pessoa física pagam e no final todos saem ganhando: o governo que não precisa executar o projeto social, o projeto social que recebe patrocínio e a empresa que faz propaganda sem perder nada além do que já deveria pagar de imposto. Entretanto, não é fácil aprovar um projeto na lei Rouanet, são infinitas burocracias, orçamentos detalhados, planilhas, documentos, descrições minuciosas, enquadramento dos projetos em formatos específicos, etc. Todo este processo faz com que a lei acabe sendo voltada para pessoas hiper especializadas, se tornando elitista. Muito se discute sobre a desburocratização do sistema sem perder seu rigor em fiscalizar as entregas para que a Lei se torne mais acessível para pequenos projetos periféricos.

A parceria do poder público com a iniciativa privada e os projetos sociais já é, na prática, o que se espera de uma sociedade democrática. Entretanto, não podemos esquecer que as empresas têm interesses políticos e comerciais e isso acaba também por interferir nos projetos que ela patrocina. Voltamos, então, às questões do coletivo palestino “The Question of Funding” presentes no capítulo 2 do livro 1:  

“Como a cultura representa as estruturas de poder político? Resiste-lhes?  Como é que os produtores culturais se transformaram em empregados dentro destas estruturas? Como é que podemos politizar a relação entre o indivíduo e a instituição?”

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