Ir para o conteúdo

Jogo-ritual 3: Semáforo das emoções

Por Lívia Moura
Sentades em silêncio, quando os pensamentos deixam de ser um fluxo ininterrupto e começam a se espaçar no tempo, podemos observar que as emoções geram pensamentos em nossa mente e vice-versa. Quando sentimos medo, automaticamente nossa mente produzirá pensamentos relacionados ao que estamos sentindo, é algo mecânico. E o contrário também pode acontecer: se acreditamos num discurso que incita a intolerância, ele irá gerar sentimentos de ódio. Mas a prática Zen afirma que não precisamos ficar à deriva das nossas emoções e pensamentos, fadados a girar eternamente numa espiral que nos leva cada vez mais ao fundo do poço. Temos a possibilidade de escolher o que fazer com nossos pensamentos e sentimentos.

Os pensamentos podem ser voluntários ou involuntários. Entretanto, a emoção é involuntária, não podemos controlar a sua chegada. Podemos até promover pensamentos e ambientes positivos para que certas emoções floresçam, mesmo assim emoções desagradáveis irão surgir sem que tenhamos controle. Para o neurocientista Jaak Panksepp emoções como a raiva podem ser classificadas como “emoções defensivas”, pois surgem como uma reação de defesa em relação a algo que nos atingiu. O autor distingue as emoções defensivas das emoções “prospectivas” como a alegria, a paz e o amor (Panksepp, 2004).

Segundo estudos etimológicos, a palavra “emoção” tem origem do verbo latim emovere: e’, “para fora” e ‘movere’, “mover” ou “pôr em movimento”. Sendo assim, as emoções podem ser vistas como um modo de impulsionar o sujeito a agir, a se defender, a fugir, a dançar, a se expandir, ou mesmo contrair, acariciar, etc. Portanto, as emoções não são “boas” ou “ruins”, “negativas” ou “positivas”. Agradáveis ou não, elas podem ser vistas como um impulso para nos colocar no movimento necessário.  

Entretanto, para elaborar os impulsos precisamos entender: de onde veio este impulso? Quais imaginários estão por trás destas emoções? O que fazer com este impulso? Como podemos direcionar esta energia? Quais pontos precisamos estimular para auxiliar o fluxo da nossa energia vital? Estas são as perguntas que se fazem dentro do labirinto do Minotauro.

Após 4 anos imersa na tradição zen, percebi que se eu tivesse recebido informações muito básicas sobre o funcionamento da mente, do corpo e das emoções na minha infância, eu teria economizado muito sofrimento. Foi então que, em 2012, decidi desenvolver atividades numa escola pública do sul da Itália que chamei na época de “Alfabetização Emocional”. Este foi meu primeiro laboratório na área de competências socioemocionais numa escola do bairro onde eu vivia – Vietri Sul Mare, na região da Campanha. As atividades se deram 2 vezes por semana em encontros de 3 horas durante um semestre, com alunos de 9 a 12 anos.

A partir desta primeira experiência, passei a utilizar a sala de aula como um espaço de acontecimentos, uma escultura social e afetiva, que me permitiu aprender com as crianças e ensinar com a criança que habita em mim. Ao longo destes laboratórios criei um “semáforo das emoções” ou “semáforo da energia vital” que se tornou a base pedagógica para o material didático na área de competências socioemocionais que vim a elaborar 5 anos depois (entre 2017 e 2019). A pedido de Carlos Piatto, então diretor da editora Raíz Educação, elaborei 5 materiais voltados para alunos do ensino fundamental I (respectivamente: 1º. 2º, 3º, 4º e 5º anos) (Moura, 2019). A confecção desta coleção, que se chama “Raiz do Afeto”, foi toda baseada em jogos-rituais, meditações e atividades artísticas voltadas para a comunidade escolar. Estes materiais me levaram a organizar e elaborar um método prático para processos que foram se  retroalimentando com as minhas ações com grupos sociais diversos em projetos de arte socialmente engajada. 

O semáforo é um instrumento pedagógico socioemocional bastante difuso e existem algumas versões possíveis que aparecem em diversos materiais socioemocionais para dizer: vermelho: pare, amarelo: observe e verde: aja; ou então, vermelho: raiva, medo, tristeza, amarelo: respire e verde: siga feliz, calmo, amoroso. Após alguns anos elaborando este semáforo junto com as atividades que eram desenvolvidas tanto com crianças quanto com adultos, reelaborei ele ao meu modo, de acordo com a minha bagagem.

O semáforo das emoções (presente na ilustração a seguir) foi baseado num semáforo descrito no livro  “Como lidar com as emoções destrutivas” (Goleman e Lama, 2003). Originalmente, ele tinha as 3 cores normais de um semáforo de trânsito. Conversando com um amigo artista, Bernardo Ramalho, decidimos inverter a ordem das cores do semáforo para que as etapas coincidissem com as cores dos chacras, adicionando também a cor violeta. Desta forma, reelaborei a sua estrutura de baixo para cima, desta forma:

  • O vermelho ficou relacionado com a camada mais física, o reconhecimento dos nossos sentimentos, é o chacra base. 
  • O amarelo é o chacra do plexo solar e, assim como o estômago, é o responsável por fazer a alquimia dos alimentos, distribuir/organizar os nutrientes e fazer a ponte com todo o corpo. Neste semáforo ele corresponde à reciclagem emocional. 
  • O verde é o chacra do coração e ficou relacionado com a cura, o amor e também a economia. No semáforo é ele que irá guiar a resposta adequada, justa, não violenta e criativa (regulando nosso dar e receber).
  • O chacra violeta é o chacra da parte superior da cabeça,  da nossa conexão com a vida, a espiritualidade. No semáforo ele é o momento que compartilhamos aquilo que aprendemos com aquela emoção com as pessoas em torno de nós. É o momento em que nos reintegramos com o grupo e  a pulsação cósmica a partir de um outro nível de consciência.

Utilizo o símbolo do semáforo – mais um termo a ser subvertido – pois, pedagogicamente, ele serve para nos lembrar que os sentimentos estão sempre em trânsito, ou seja, são apenas hóspedes provisórios. Um conto zen diz que “ passam as nuvens, as tempestades e os raios, mas por detrás existe sempre um céu azul com um sol a brilhar”. Para a tradição Zen, todos têm um Buda de ouro dentro de si coberto por uma dura camada de lama. Portanto, no método VAV, parte-se do princípio de que existe saúde dentro de todos nós (um céu azul), apesar de cada um ter o seu modo próprio de ser saudável. 

Como foi falado anteriormente, os sentimentos e emoções têm uma função muito importante na regulação da vida humana. De acordo com os estudos de Comunicação Não Violenta (CNV), eles surgem quando uma necessidade é atendida ou não é atendida. Se estamos com deficiência de nutrientes, podemos sentir fome; se estamos sem espaço para nos expressar, podemos sentir raiva; se estamos sem dormir, podemos sentir irritação. Cada pessoa sente coisas diferentes diante de alguma necessidade não atendida ou atendida. Entretanto, muitos estudos concordam que as necessidades e emoções básicas são as mesmas para todos os seres humanos (Evans, 2022). E isso justifica a criação, por exemplo, dos “Direitos Humanos Universais”.

A “Comunicação Não Violenta” é uma prática desenvolvida pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, que se espalhou em diversos lugares do mundo como uma ferramenta para promover a paz e ajudar na resolução de conflitos, inclusive aqueles judiciais. Esta prática fez um mapeamento das nossas necessidades humanas universais. Seguem alguns exemplos de necessidades universais mapeadas pela CNV: Liberdade, reconhecimento, celebração, espaço, inclusão, confiança, alimento, respeito, cuidado, cooperação, luto, intimidade, etc. A partir desta pequena lista, pode-se dizer que as necessidades universais não se referem àquilo que nos falta, mas dão nome aos aspectos que compõem o bem-estar em todos os níveis: emocional, mental, social e espiritual: “as necessidades são intangíveis, sem referência a pessoa, ações ou objetos “(Grok, 2018: 5). O dinheiro, portanto, não seria uma necessidade, mas uma estratégia possível para atender a certas necessidades como: conforto, alimento, segurança, diversão, etc (Grok, 2018:6). nas palavras do criador da CNV:

“Quando nos concentramos em esclarecer o que o outro observa, sente e necessita, em vez de analisá-lo e julgá-lo, descobrimos a profundidade da compaixão. Pela ênfase na escuta profunda – de nós e dos outros -, a CNV promove respeito, atenção e empatia e gera o desejo mútuo de nos entregarmos de coração.”

(Rosenberg, 2021:20)

O foco dos projetos de arte cosmopolítica da VAV é ajudar os indivíduos a voltar ao seu “cerne” (Reich, 1988). E só existe um lugar onde podemos acessar ele: em nós mesmes. Não iremos encontrar este “cerne” em livros, gurus, psicólogos, professores ou amantes. Como diz um ditado Zen, eles são apenas o dedo que aponta a lua. Para acessar o nosso cerne precisamos olhar com nossos próprios olhos para a lua. Mas qual a estratégia principal para olharmos diretamente para a lua?

Nosso corpo é tão perfeito que, quando uma necessidade é atendida ou não, ele emite sinais: sentimentos, agradáveis ou desagradáveis. Sentimentos são uma energia, um impulso, um enigma que tem como função nos direcionar para saciar uma necessidade básica que não foi atendida ou nos demonstrar que ela está sendo atendida. 

Existem muitas interpretações sobre as diferenças e semelhanças de significado das palavras sentimento e emoção. Utilizarei a palavra sentimento para me referir a sensações no corpo como frio, fome, tontura, aperto, leveza, dor, prazer etc e emoções para nomear certos sentimentos ou um conjunto de sentimentos: raiva, medo, alegria, tristeza, etc. Por exemplo: este sentimento de aperto na garganta é uma emoção chamada angústia.

O método VAV propõe olhar para todas as necessidades que temos e resumi-las em “amar e sermos amades”. Mesmo quando a necessidade é repouso e alimento, saciar essas necessidades é um ato de amor próprio. Quando não sabemos como saciar as necessidades que os sentimentos nos apontam, podemos buscar estratégias equivocadas, o que a CNV chama de “estratégias trágicas” (Grok, 2018), nos distanciando ainda mais do objetivo final. E, ao invés da energia/libido fluir em direção ao amor, ela pode ficar bloqueada e se acumular gerando distúrbios, doenças físicas, mentais e espirituais. Essa é a receita perfeita para cultivar o “Zé ninguém”.

Foi justamente para desenvolver uma compreensão prática e didática deste processo descrito acima de busca pelo amor que desenvolvi este semáforo. Para utilizá-lo, em primeiro lugar é necessário reconhecer com sinceridade e sem julgamentos as nossas sensações no corpo. Reconhecendo essas sensações, podemos dar nomes para elas. O que sinto é uma emoção chamada “raiva”? Junto com raiva tem um sentimento de “fome” e “cansaço”? É importante aceitar sem julgar nossos sentimentos, afinal, eles são todos necessários. Quando nomeamos nossos sentimentos e aceitamos eles sem julgamento – por mais desagradáveis, vergonhosos e dolorosos que eles possam ser – a luz vermelha do semáforo acende. 

Semáforo das emoções, gráfico, Lívia Moura. Fonte: MOURA, Lívia Barroso. O segredo do céu azul - Raiz do Afeto (Ensino Fundamental) Livro 2. Rio de Janeiro: Editora Raiz Educação, 2018. p. 52.

Num dos encontros do primeiro laboratório de alfabetização emocional que desenvolvi para crianças, uma delas me disse: “eu tenho medo do medo”. Este medo de acessar o medo faz com que nós evitemos entrar em contato com as sensações do nosso corpo e assumir que estamos sentindo medo. E o medo, que era pequeno, ao ser jogado na sombra do inconsciente, vai aos poucos se tornando um monstro. Relegado ao cativeiro do porão, sem espaço para fluir, ele vai se acumulando livremente até o tiro sair pela culatra. As emoções defensivas, quando acumuladas, acabam se expressando de maneira totalmente desmedida, fora do nosso controle e do contexto real, levando as pessoas até a cometer hediondos crimes contra a humanidade.

Nestes casos não é o cerne que está sob o controle de nossas ações, são os instintos reprimidos e incontroláveis do gerente Zé Ninguém que tomam a dianteira. As sensações são abstratas em si, e dar nome para elas pode ajudar na sua elaboração, e o nosso verdadeiro mestre ou mestra interior toma a dianteira no lugar do Zé Ninguém. Entretanto, existem sensações extremamente complexas e contraditórias que, inclusive, mesclam emoções opostas. Quem nunca sentiu amor e ódio por um romance que acabou? E é por isso que a nomeação das emoções não basta. Precisamos fazer arte como uma alquimia para entender e elaborar a complexidade das nossas necessidades, é aí que podem acender todas as  luzes do semáforo (vermelho, amarelo, verde e violeta). Para Mário Pedrosa a arte é uma forma de educação dos sentidos e das emoções, seria uma forma de sentir a “vida palpitante das coisas  por si mesmas” (Pedrosa, 2023: 145).

Uma das principais funções deste semáforo é ressaltar que existe uma diferença entre emoção e comportamento; todos os sentimentos são aceitáveis, mas nem todas as condutas são aceitáveis. Não somos obrigados a seguir os nossos impulsos violentos, tampouco devemos nos identificar com todos os pensamentos que passam na nossa cabeça. Podemos deixar que os impulsos violentos e pensamentos obsessivos cheguem e voem como passarinhos, sem fazer ninho na nossa cabeça. Entretanto, reprimir ou controlar o impulso/emoção não faz com que ele desapareça. Como vimos anteriormente, reprimir o impulso desperta o fascista Zé Ninguém. Portanto, o semáforo nos convida a não reprimir os impulsos/emoções e sim direcionar esta energia para algo propositivo. E ninguém, além de nós mesmos, é o responsável por essa alquimia da energia vital. 

Após identificar nossos sentimentos sem julgamento, precisamos entender quais necessidades não foram atendidas e utilizar com criatividade a energia da emoção para que a luz amarela do semáforo das emoções acenda. Na luz amarela, o método do semáforo das emoções propõe atividades para ajudar na reciclagem emocional, oferecendo instrumentos interativos, expressões artísticas e rituais para relaxar, extravasar, compreender o conflito e elaborar as emoções. Em algumas propostas apresento uma dinâmica que minha intuição acredita ser interessante para o grupo envolvido. Em outras, proponho que es participantes criem seus próprios rituais e estratégias de reciclagem das emoções. 

Afinal, existem infinitas maneiras de elaborar as emoções e fazemos isso o tempo todo, sem nem nos dar conta: por vezes correr todos os dias é um bom caminho, por vezes ficar parado em contato com a respiração é o mais adequado. Cada tipo de terapia, expressão artística ou mesmo ritual religioso pode ser bom para uma determinada situação diferente. Agir imediatamente pode ser a melhor saída ou, pelo contrário, deixar por anos as sensações se acalmarem é o mais certeiro. Cada pessoa, em cada momento, irá demandar um modo diferente de reciclar as emoções.  Algumas emoções são mais fáceis e a gente nem percebe que fez a tal da alquimia, outras, por sua vez, são um trabalho para uma vida inteira!

Partindo do princípio de que todas as emoções partem do amor ou da falta dele, reciclar as emoções é nos colocar de volta o mais próximo possível na trilha do amor. 

Seguindo nas luzes do semáforo, este processo de reintegração com o amor só se completa com a luz verde e violeta acendendo. A luz verde acende quando agimos, ou seja, respondemos à situação de maneira restaurativa e não violenta. Não basta somente nomear as emoções, meditar, digerir e elaborá-las; é necessário agir de maneira coerente, materializar a transformação que está ao nosso alcance e que cabe à situação em questão. Nós não precisamos ser violentos quando temos sentimentos desagradáveis, o que precisamos é entender, como num enigma, qual a ação criativa que o sentimento está nos indicando para encontrarmos um estado de regulação entre o eu e o mundo. A violência só é uma resposta quando não temos outra opção e, mesmo assim, ela dificilmente irá resolver o conflito. Às vezes, o simples fato de usar as palavras justas pode resolver o conflito, mas a resposta justa pode ser também se afastar, parar, ficar em silêncio ou descansar. Pode ser necessária uma faxina geral na casa ou uma reação agressiva energética, ou mesmo uma ação judicial para impedir que a situação não se perpetue ou piore ainda mais. Por vezes, é só uma felicidade reprimida que pede passagem para sair e se expressar em forma de sorrisos, abraços e danças. 

Quando a luz violeta acende significa que é um momento para ter consciência do que foi aprendido com as emoções e oferecer os frutos dessa sabedoria para a comunidade.  A luz violeta é o momento que nos reintegramos com o grupo ou que nos reconectamos com o amor de uma maneira mais ampla, mais complexa, mais consciente e mais sábia. É o momento de mostrar para o mundo o que você aprendeu com a montanha russa das luzes do semáforo. O que o conflito te ensinou e como você expressa na sua vida seus benefícios? Qual o resultado espiritual dessa jornada emocional? Vamos sedimentar e celebrar essa expansão da consciência? A luz violeta é a espiritualidade na prática, é a coerência entre o que se pensa, o que se fala, o que se sente, o que se faz.

O semáforo é uma maneira de analisar, decodificar e separar parte por parte um processo que pode acontecer todo misturado, ao longo de anos ou mesmo num segundo relâmpago de tempo. Ele pode ser um instrumento pedagógico para crianças ou adultos, individualmente ou em grupos – famílias, escolas, ações artísticas, movimentos sociais, círculos terapêuticos – onde os participantes envolvidos são convidados a reconhecer e reciclar suas emoções (luz vermelha e amarela do semáforo), mas também a oferecer um resultado para um público externo, que podem se dar em forma de imagens, diálogos, objetos, projetos sociais, gestos ou ações (luz verde e violeta do semáforo).  




plugins premium WordPress