(Itamonte, 2023)
Estudo de caso
Por Lívia Moura
Apesar de muitos esforços voluntários, não conseguimos fazer girar a moeda social do E-dinheiro no nosso banco comunitário O app apresentava muitas complicações estruturais impostas pelo Banco Central e outras complicações tecnológicas que são responsabilidade do Instituto E-dinheiro. Fomos desistindo de implementar o app do E-dinheiro na região, pois cada vez menos pessoas acreditavam no projeto (que já era difícil de ser implementado). Afinal, precisávamos de uma grande quantidade de pessoas acreditando e testando o sistema para que houvesse centenas de transações comerciais e 1% do valor delas sustentasse os funcionários do banco.
Ou seja, para que tivéssemos uma receita de 4.000 reais que pudesse pagar 2 funcionários com um salário mínimo e sobrar algum dinheiro para materiais e micro-crédito, a moeda precisava girar 400.000 reais por mês em transações comerciais locais. Fomos percebendo, durante o processo, que a conta dificilmente iria fechar. Até que isso acontecesse seriam muitas horas, meses e anos de trabalho voluntário para um pequeno retorno. Não digo que seja um sistema impossível de criar do zero, mas requer uma mobilização social extremamente articulada e ativa, coisa que não temos em quase nenhum lugar do planeta porque o capitalismo faz de tudo para desmanchá-lo.
Além disso, por 2 vezes (das poucas que experimentamos) tivemos problemas técnicos com o sistema do E-dinheiro e o comerciante só conseguiu acessar o dinheiro dele mais de 2 semanas depois. O dinheiro voltou afinal para as mãos dos comerciantes, mas isso abalou muito a confiança destas pessoas em nós: voluntários de um banco que estávamos inventando do nada. Outros comerciantes leram os comentários horríveis que tinha no app do E-dinheiro e nem chegaram a aderir. Além disso tudo, mexer com dinheiro Real das pessoas é uma responsabilidade grande que requer dedicação exclusiva e uma remuneração adequada.
Os dois mercadinhos locais da zona rural onde vivemos já evitavam o banco normal, só aceitavam dinheiro em papel e ainda faziam a venda fiada, anotando os valores em uma caderneta. Eles já eram desconfiados com bancos e tecnologia, imagina com um banco tão artesanal. Eles nunca aderiram, apesar de muitos esforços de vários membros do banco em convencê-los. Nossa estratégia inicial era começar o sistema de trocas monetárias pelos mercadinhos do bairro local e, a partir deles, se expandir para um posto de gasolina do centro da cidade, uma farmácia, uma loja de construção, etc. Dessa forma, se tornaria mais atrativo para o mercadinho local, pois ele poderia usar a moeda para comprar gasolina e o posto teria todos os clientes da moeda dando preferência para ele, gerando abundância para todes envolvides. Enfim, uma cadeia Don Quixotesca que nunca se materializou.
Além do mais, o acesso ao Banco Palmas era muito difícil, eles não promoviam cursos de capacitação (como prometem no seu estatuto), muito menos reuniões com os membros da rede nacional de bancos comunitários para trocar ideias, solucionar problemas, criar redes de apoio, ouvir críticas, etc. Ao longo de um ano e meio ficamos sediados dentro de um outro banco comunitário de São Paulo – o Banco Padre Leo – e a pessoa que fazia a intermediação com o E-dinheiro – a Vani – nos ajudou muito. Somos muito gratos pelos seus esforços voluntários.
Entretanto, ao longo de todo esse tempo insistindo na implantação da moeda através do E-dinheiro na região, mandamos cartas assinadas por diversos bancos comunitários com sugestões e pedidos de assembleia ao E-dinheiro, mas nunca tivemos acesso a uma conversa com o Instituto e também nunca tivemos informações sobre como eles utilizavam os 1% das taxas dos bancos comunitários. A partir de muitos encontros com outros bancos fui entendendo que os bancos municipais funcionavam bem, enquanto os bancos raiz (como o nosso) estavam quase todos extremamente precários e abandonados.
Os bancos municipais, são bancos onde o município faz um contrato direto com o Instituto E-dinheiro, pagando um valor por mês para ele fazer a manutenção e consultoria do banco. Além disso, o banco municipal pode pagar os salários dos funcionários públicos com moeda social e permitir que contas como gás, luz e boletos em geral sejam pagas também com a moeda social. O município também incentiva os comércios a aderirem ao banco comunitário, fazendo a roda girar ainda mais e os usuários retirarem menos o dinheiro do sistema para colocar nos bancos tradicionais.
O banco municipal parece ser uma grande vantagem para o município. No caso do Banco Municipal Mumbuca (de Maricá, RJ), como eles pagam uma taxa para o e-dinheiro, eles ficam com os 2% da taxa das transações comerciais e podem decidir o que fazer com este valor. Além do mais, como foi explicado acima, o dinheiro circula mais dentro da região, valorizando os produtos e serviços locais.
Em 2022, assisti uma palestra online com os organizadores do Banco Mumbuca. Naquele período, o banco já tinha cerca de 60.000 usuários. Dentre os diversos projetos incríveis que o banco estava implementando com o valor dos 2% das taxas, me chamou atenção um projeto de empreendedorismo para jovens secundaristas, onde eles recebiam uma bolsa de estudo para empreender um negócio quando se formassem.
Provavelmente, existem iniciativas do Mumbuca que não estão relatadas no site. Entretanto, durante o encontro on-line com seus gestores fiz uma pergunta sobre como era a governança do banco. Eles nos explicaram que existia um núcleo gestor ligado à prefeitura que tomava as decisões sobre como utilizar os fundos. Esse tipo de gestão se difere dos bancos raízes, onde as decisões são feitas em assembleia aberta a todes es usuáries. O risco do banco municipal é que ele pode ser instrumentalizado politicamente. Ao levantar esta questão para os gestores do Mumbuca, eles disseram que o banco estava se fortalecendo tanto que, mesmo com a mudança de partido político na gestão da prefeitura da cidade, o banco tinha uma força própria e seguiria.
Entretanto, mesmo que o comitê gestor seja realmente eficaz e justo na gestão do banco (como acredito ser o caso), o fato dos usuários não serem os “donos” deste banco – independentes, mas parceiros da prefeitura-, pode gerar problemas políticos futuros. Em todo caso, é impossível um banco comunitário promover mais desvio e exploração do que um banco tradicional já pratica. E, se o fizer, pela sua dimensão pequena será mais fácil denunciar e os responsáveis poderão ser mais facilmente punidos pelo ato ilegal.
Completamente diferente de um banco tradicional que tem permissão legal para roubar significativas fatias da fortuna de países inteiros. Ou seja, a moeda municipal, mesmo se sua gestão for monopolizada, ineficaz e corrupta, tem o potencial de trazer muito mais benefícios que o sistema monetário tradicional, além da possibilidade de reivindicação, justiça e punição, o que é impossível frente ao mercado financeiro. Afinal, é mais fácil lidar com um tirano que está próximo do que com um tirano distante, legalizado, extremamente poderoso e inacessível.
Em 2023, o Acauã Ferreira, um dos fundadores do BanCoTeAMa, foi no encontro de comemoração dos 25 anos do banco palmas em Fortaleza como representante do nosso banco. Acauã foi na esperança de ter uma conversa coletiva com o Instituto e-dinheiro e a Rede Brasileira de Bancos Comunitários sobre as dificuldades dos bancos raiz e também apresentar propostas de soluções tecnológicas para comunicação, transparência e para o fortalecimento da economia solidária. Entretanto, a tão esperada reunião marcada para falar sobre as dificuldades e sugestões de melhorias no sistema durou apenas 20 minutos e o microfone de Acauã foi retirado quando ele disse que faltava comunicação e transparência na rede. Este encontro era a nossa última esperança para continuar seguindo com o E-dinheiro e tentar interagir com a Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Após este episódio, nos distanciamos desse movimento, paramos de tentar fazer funciona moeda local girar e continuamos com os projetos do BanCoTeAMa que estavam dando frutos.
A partir da observação, estudos e experiência com moedas sociais, acredito que elas precisam ser inventadas de acordo com as necessidades e a realidade local. Não existe uma fórmula de bolo que irá servir para todas, apesar de que, como no caso do banco Palmas, existem modelos que podem ser replicados com mais ou menos sucesso em outras regiões.
Em 2023, convencidos de que precisávamos de capital semente para seguir adiante e não perder as nossas pequenas conquistas, partimos para a estratégia de captar recursos – capital semente- em editais para projetos sociais. Foi numa reunião com uma ONG que estávamos convidando para desenvolver um projeto para adolescentes na nossa região, que conhecemos Patricia Rodrigues, integrante da comissão da Rede Mineira de Pontos de Cultura e especialista em editais e enquadramento em projetos incentivados pela lei Rouanet. Não conseguimos levar adiante o projeto da ONG, mas logo em seguida a Patrícia me ligou oferecendo seu serviço de consultoria para criação de projetos para a Lei Rouanet.
Consegui convencer Acauã Ferreira e Rita Fonseca do banco a fazer essa consultoria, assim como Joana Caetano e Letícia Mattoso – antigas integrantes da VAV que tinham vindo morar perto de mim – e Regina Vassimon, ativista cultural do centro de Itamonte. O resultado desta consultoria foi a aprovação na lei Rouanet do projeto “Nascentes Criativas: arte, inclusão e tecnologia para o fortalecimento da cultura rural”, um plano anual com 5 projetos, cada um coordenado por uma pessoa: Jedai- Jovens Empreendedores Digitais de Alto Impacto (Acauã), Cinema na Montanha (Joana), Brincar -contraturno infantil (Rita), Manticanto -coral (Regina) e a Cooperativa da lã Mulheres Rurais da Montanha (coordenado por mim). Após 1 ano de captação e elaboração de outros editais conseguimos captar 20% dos R$ 1.200.000 aprovados pela Lei Rouanet e começamos o projeto em abril de 2024.
O resultado mais importante, a meu ver, desses movimentos sociais na zona rural é que criamos redes de redes, amizades e acendemos a fagulha de vários movimentos locais para se articularem de maneira cooperativa. Além do mais, a partir de toda a comprovação que tínhamos postado nas redes sociais ao longo de 3 anos de atividades do BanCoTeAMa, conseguimos ter a comprovação para nos tornarmos Ponto de Cultura.
Os Pontos de Cultura são uma política pública criada 2004 como parte do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura do Governo Federal com o objetivo de descentralizar dos museus, teatros e espaços culturais das grandes cidades os recursos destinados à cultura. O intuito desta política é certificar grupos de pessoas que produzem cultura nas periferias, na zona rural, nas ruas das cidades, cortejos, etc. Assim como os projetos de economia solidária muitos dos Pontos de Cultura ficaram sem recurso federal nos últimos, mas com a nova gestão do governo Lula, em 2023 o programa do Cultura Viva voltou com fundos para serem investidos por todo o Brasil.
O nosso Ponto de Cultura precisava de um nome e de uma história longa para comprovar a sua existência. O nome Banco Comunitário das Terras Altas da Mantiqueira, além de recente, não poderia ser usado porque a palavra “banco” não se enquadra na área de Cultura. Patrícia Rodrigues, então, sugeriu que usássemos o antigo nome VAV por conta do seu currículo de mais de 10 anos de atividades. Confesso que fiquei muito reticente em colocar um nome antigo, que não era da região, escolhido pela comunidade. Havíamos, até então, escolhido todos os nomes dos projetos em assembleia – BanCoTeAMa, Cooperativa da Lã Mulheres Rurais da Montanha, Nascentes Criativas, etc.
Entretanto, naquele momento, após centenas de reuniões do banco comunitário, alguns projetos tendo dado certo e outros não, não sentia que era o caso de convocar mais uma assembleia para falar de algo que parecia tão remoto, abstrato e incerto. Não sabia se íamos ser aprovados como Ponto de Cultura e muito menos se teríamos alguma verba para fazer algo. Percebo que, por vezes, precisei avançar sozinha para, depois de encontrar a nascente, chamar todo mundo para beber daquela fonte. Desta vez, senti que eu precisava correr o risco sozinha e ver onde iria dar. Por conta disso, o Ponto de Cultura que havia sido aprovado em fevereiro de 2023 só foi apresentado em janeiro de 2024 para a comunidade, após a certeza de que havíamos ganhado 4 editais somando R$ 116.500,00 para atividades culturais na região.
Na assembleia geral para formar o CNPJ do Ponto de Cultura e transformá-lo numa associação sem fins lucrativos, decidimos que a presidenta deveria ser uma pessoa nativa e o corpo administrativo ter mais pessoas nativas do que de fora que moram na região. Minha preocupação era que o Ponto, por ter sido fundado por uma pessoa de fora (eu), girasse somente entre pessoas de fora e não se enraizasse na comunidade de verdade e de maneira duradoura. Convoquei, então, mulheres nativas que eu admirava e que eu tinha afinidade para apresentar o Ponto e oportunidade que tínhamos com os prêmios comunitários já aprovados. A equipe da AVAV – Associação Vendo Ações Virtuosas – ficou da seguinte maneira (as pessoas em negrito são as nativas):
Luciene Fonseca (presidenta), Lívia Moura (vice-presidenta), Rita Fonseca (1ª tesoureiro), Germano Braga (2° tesoureiro), Lucimara Fonseca (1ª secretária), Marcela Camargo (2ª secretária), Conselho fiscal: Roseana Fonseca Cristina Fonseca, Cristina Fonseca, Karlla Miranda e membro suplente: Joana Caetano.
A maioria das pessoas nativas que compõem a associação foram professoras dos meus filhos e estavam presentes na fundação do banco comunitário. Decidimos, na assembleia constitutiva da AVAV, que o ponto seria dividido em diferentes núcleos criativos que seriam autônomos e interdependentes, dentre eles: a cooperativa da lã, a cooperativa do sabonete, a cooperativa do bambu e marcenaria, a feirinha de produtos locais, o núcleo de turismo de base comunitária, o núcleo de tecnologia, etc.
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