(Chipre, 2023)
Estudo de caso
Por Lívia Moura
Este jogo-ritual foi criado como conclusão do intercâmbio do doutorado na Universidade de Nicósia (Chipre) em 2023. Dentre as obrigações do intercâmbio estava a realização de uma exposição. Depois de algumas semanas estudando com minha co-orientadora, Evanthia Tselika, concluímos que seria mais coerente trazer um exemplo prático do que eu estava escrevendo naquele momento e não uma exposição documental. O assunto que eu estava me debruçando era o Ato 1 do capítulo 3 do livro 1: Libertação do imaginário.
Sendo assim, junto com Chrystalleni Loizidou, escolhemos um local que fosse propício para um jogo-ritual que pudesse acolher pessoas: a galeria Nasty Cat da artista Athina Antoniadou. O roteiro do ritual foi co-criado com a curadoria de Chrystalleni Loizidou e grupos locais que eu havia conhecido ao longo dos 3 meses que residi em Nicosia: Moires projetc, composto pelas alunas de dança do ventre de Stalia Nicolaou, a mestra de dança do ventre de Stalia, Sylvia Serena, o grupo de tambores árabes Katakwa drummers e a performer Justina Ataman. Meu convite para estes participantes co-criadores era pensar um ritual sobre entrar em contato com as repressões que o sistema patriarcal impõe sobre os nossos corpos e transmutar esta energia para despertar a nossa serpente interna (kundalini).
Este jogo-ritual aconteceu no dia 3 de julho das 18:30hs às 22hs. Quando criamos o convite com toda a programação, lidei com a possibilidade de muitas pessoas pularem a primeira parte e chegarem no meio do ritual. Entretanto, para meu espanto, apareceram cerca de 40 participantes, entre homens, mulheres e crianças, às 18:30.
O ritual se deu da seguinte forma:
Parte 1: Vaporização fitoenergética íntima
Começamos o ritual sentados em roda no jardim. Expliquei sobre o que iria acontecer durante as próximas horas e convidei a todos a co-criar este ritual como atores de uma peça teatral interativa. Apresentei a vaporização e contei para os participantes algumas das histórias que apresento no Ato 1 do capítulo 3 do livro 1: Libertação do imaginário. As mulheres foram convidadas a fazer uma vaporização e os homens um escalda pés. Exceto as mulheres que estavam menstruadas, que se juntaram aos círculos de homens para o escalda pé. A vaporização é uma prática ancestral onde as mulheres se sentam sobre um vapor (ou chá) e absorvem as propriedades medicinais (ou psicotrópicas) pelo canal vaginal. O escalda pé funciona da mesma forma, mas é pelo pé que as propriedades são absorvidas. A erva escolhida foi o gerânio, por conta de suas propriedades fitoenergéticas de estimular o despertar do poder pessoal, a criatividade, o amor próprio, a purificação e proteção.
Espontaneamente, as pessoas se fecharam em pequenos círculos, de acordo com a quantidade de água quente que vinha chegando para preencher as cumbucas e bacias. Nestes círculos as pessoas ficaram trocando impressões sobre as histórias que foram apresentadas. Terminando a vaporização, Justina Ataman pintou o rosto dos participantes que quiseram.
Parte 2: Encantaria para humanos
Em seguida, entramos para dentro da galeria (um cubo branco) onde expliquei sobre o sistema de rituais psicomágicos descritos Ato 1 e 2 do capítulo 3 do livro 1. Nesta conversa, expliquei que todo mundo pode criar os seus próprios jogos-rituais e que iríamos mergulhar com nossa imaginação num ritual de transmutação inspirado na trajetória de Lilith. Para trazer um exemplo prático de como a arte pode atuar como um sonho através do nosso inconsciente, projetei o ritual Ação Uterina: encantaria para humanos . Dentre os participantes , um deles tinha trazido um didgeridoo (instrumento feito com um tubo de madeira que se toca sobrando, formando um som contínuo e meditativo). Sem organização prévia, perguntei se ele topava fazer a sonoplastia dos 11 minutos da videoarte e ele topou improvisar.
Parte 3: Como uma vaca de frigorífico
Um tecido de 2m por 2m foi colocado no chão da galeria e convidei um participante para deitar sobre o tecido de modo que pudéssemos desenhar seu contorno. Chrystalleni Loizidou se prontificou a se deitar e seu filho de 5 anos, Iannos, desenhou o seu contorno. Em seguida, fiz traços separando as regiões do desenho do contorno do corpo de Chrystalleni, como se fosse uma ilustração de uma vaca de frigorífero. Expliquei que esta era uma metáfora de como os sistemas de repressão lidam com os nossos corpos.
Parte 4: Entrar em contato com a dor e opressão
Para este momento, eu havia preparado uma tinta vermelha com cochilha (um ácaro que dá em cacto que produz pigmento vermelho) e outra com carvão. Convoquei, então, es participantes a desenhar com estas tintas as opressões que o sistema impõe sobre os seus corpos na área correspondente a essa dor no corpo desenhado. Neste momento, es participantes começaram espontaneamente a tocar tambores, gritar e emitir sons melódicos pesados, expressando dor e sofrimento.
Parte 5: Curando o pecado original
Nesta parte do ritual, o público se sentou para escutar uma narrativa de Sylvia Serena sobre a origem do patriarcado e as feridas que precisamos curar para nos tornarmos co-criadores da vida, integrando o feminino e o masculino. Enquanto Sylvia narrava a história (presente do Ato 1 no capítulo 3 do livro 1), as dançarinas do ventre o projeto Moires faziam uma performance enquanto os percussionistas do Katakwa drummers tocavam seus tambores. No final desta parte, o público já estava dançando com as performers.
Parte 6: Abrir o portal
Quando criamos o nosso roteiro, não imaginávamos que neste momento as pessoas já estariam dançando e isso foi muito mais potente do que poderíamos imaginar. Levantamos o desenho/pintura que fizemos e, com uma faca, fiz um rasgo no meio do tecido. Eu estava atrás do tecido e não percebi que no momento em que fiz o corte quase acertei uma das participantes que estava dançando do outro lado do tecido. No final do ritual, ela me contou que sentiu um leve arranhão da ponta da faca e que isso tinha sido muito simbólico para ela.
De acordo com nosso roteiro, o corte deveria ficar no meio do corpo desenhado, atravessando ele todo. Mas quando erguemos o tecido, eu não percebi que havíamos pintado ele dobrado pela metade e ficou metade do tecido sem desenho algum. O corte foi então feito ao lado do corpo e do outro lado ficou um vazio. Uma imagem especialmente simbólica para Chrystalleni e Iannos, que lida com a ausência total do pai. Quando o coletivo mergulha em presença nesses jogos-rituais, muitas sincronicidades inesperadas acontecem.
Parte 7: O despertar da kundalini
Com o portal aberto e os tambores soando, todas as pessoas presentes – adultas, idosas e crianças – e até um cachorro atravessaram o portal entre gritos, danças e gestos engraçados. Quando todas as pessoas presentes atravessaram o portal o tecido foi levantado e circulou por cima dos participantes que seguiram dançando em uma alegre catarse para despertar a sua kundalini.
No final do ritual um dos participantes (nativo do Chipre) veio me dizer que ele se parecia muito com o “teatro ofitina”. Demorei alguns segundos para entender que ele queria dizer “Teatro Oficina”. Eu me maravilhei que alguém lá conhecesse este teatro e concordei. Não que eu estivesse consciente deste aspecto, mas o que havia provocado alí estava em total sintonia com o trabalho de Zé Celso. No dia seguinte, vim a saber que durante o nosso ritual, a casa do Zé Celso estava pegando fogo, o que acarretou em seu falecimento. Sem perceber, eu estava em sintonia, do outro lado do mundo, com este grande feiticeiro do teatro brasileiro… em chamas.
Todas as pessoas que participaram do ritual levaram para casa um cartaz impresso numa folha A4 para continuar o ritual em casa (presente na página 255 do livro 1). Ao retornar do Chipre, dei este cartaz para a professora do departamento de psicologia Bárbara Cabral da UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco, Petrolina, Pernambuco) e ela reincenou reinventando duas vezes este ritual em dois encontros no mês de maio de 2024. Ela mudou o nome do ritual para “Ritual desopressor” e utilizou num dos rituais pedras e no outro sapatos para marcar as opressões do sistema no corpo.
Ponto de Cultura VAV 2024. Todos os direitos reservados.