(Itamonte 2021)
A Cooperativa da Lã se propõe a manter vivo o patrimônio imaterial do bairro rural do Campo Redondo e adjacentes da cidade de Itamonte, MG por meio do resgate da produção de lã na região.
A tradição da lã remonta mais de 6 gerações no bairro do Campo Redondo, zona rural de Itamonte, MG. Nos anos 2010 a produção se extinguiu. Em 2021 ela foi retomada pelo Banco Comunitário das Terras Altas da Mantiqueira, um projeto de economia solidária incubado pelo Ponto de Cultura VAV.
Desde então, a Cooperativa já participou de exposições na Casa da Cultura de Itamonte e no Festival de Artes e Ofícios de Baependi.
Desde então, cooperativa contou com a participação de cerca de 20 mulheres rurais de 13 a 85 anos:
Juliana Ju
Regina Lúcia Fonseca O.
Regina Fonseca A.
Andressa Chaves Fonseca
Thayná Lara Lúcia da Silva
Beatriz Ferreira dos Santos
Dulce Fonseca
Edmea Fonseca Paiva
Nelma Fonseca
Vanessa Fonseca
Maria Silva
Helena Fonseca
Helene Arthur
Marli Fonseca
Fabiana Ferreira dos Santos
Duan Fonseca
Lívia Moura
Karlla Asimos
Juliana Fernandes
Cassia Diniz Fonseca
Julia Fonseca
Rita Fonseca
Tamara Fonseca
Estudo de caso
Por Lívia Moura
A partir do incentivo do professor Hamilton Rocha, decidi retomar a produção de lã na região com o intuito de formar uma cooperativa local. Em 2021 faziam 5 anos que a produção de lã havia acabado por completo. Os motivos que as antigas artesãs davam ao término da produção foi a falta de possibilidade de escoamento dos produtos. Na primeira formação da Cooperativa em 2021 estiveram presentes: Juliana Fonseca, Maria Silva, Marcela Camargo, Helene Arthur, Marli Fonseca, Dulce Fonseca ,Regina Fonseca O., Regina Fonseca A., Beatriz, Andressa Fonseca e eu.
Inspirada pelos princípios de economia solidária, retomamos (no final de 2021) a produção de lã de maneira cooperativa, inspiradas pelos movimentos de economia solidária. Para Paul Singer, a economia solidária seria uma recusa do trabalho subordinado e da exploração do ser humano pelo ser humano. Neste sistema todos são ao mesmo tempo trabalhadores e donos do seu próprio trabalho (Singer, 2002). Portanto, diferente das dinâmicas anteriores da produção da lã, agora todas as artesãs envolvidas, deveriam decidir o valor de cada serviço em assembleias informais.
O grande desafio da retomada da produção de lã é construir uma dinâmica cooperativa e anti-colonial entre nós. Segundo as cooperadas, antigamente a lã era produzida em mutirão, elas trocavam o dia de trabalho umas com as outras para finalizar o serviço. Mais recentemente, na década de 90, a lã passou a ser encomendada por uma pessoa de fora. Neste esquema, cada pessoa abaixo da cadeia produtiva ganhava menos e era alienada dos outros valores e processos. Segundo as artesãs, os valores pagos pelos serviços nessa época eram injustos.
Assumir a responsabilidade sobre o bom funcionamento da produção é em si uma ruptura significativa no modo colonialista com o qual as pessoas foram ensinadas a sobreviver. Sobretudo numa zona rural tão castigada pelo trabalho explorador. O que foi sendo ensinado através do sistema colonial capitalista, apesar das resistências anti-colonialistas, é obedecer comandos e se lamentar deles. A grande virada agora é cada uma decidir o valor do próprio serviço, a quantidade de serviço que quer assumir e o ritmo do trabalho, se responsabilizando tanto pelo sucesso quanto pelo fracasso do empreendimento. Este sistema cooperativista convoca a todas nós a sermos donas da cooperativa e não competir entre nós, deixando de ver a companheira como uma concorrente.
Muitas das artesãs haviam passado anos em outros serviços escravocratas, gerando muitos sofrimentos e traumas que emergem nas relações atuais da cooperativa. Da mesma forma, os intermediadores da lã pagavam o serviço a preços muito baixos e revendia por um preço alto. Atualmente, a maior fonte de renda, não só das meninas da cooperativa, como de muitas famílias da região é a aposentadoria rural. Os trabalhos com a lã se apresentam como uma renda complementar e ,sobretudo, como um processo terapêutico de desenvolvimento da subjetividade, soberania, autonomia criativa e elaboração das emoções.
Estas mulheres da cooperativa, apesar de todas as transformações culturais, sociais e econômicas que a região havia passado nas últimas décadas, se mantiveram essencialmente coletoras – de ervas para remédios, frutas para geleias, pinhão, galhos para vassouras, etc -, além de cozinheiras, faxineiras, agricultoras, apiculturas, costureiras, cuidadoras – de bichos, crianças, idosos, etc. Procuro mostrar constantemente que estes trabalhos – que são os mais desvalorizados e invisíveis – são na verdade de grande valor e serventia para o futuro, trabalhando com a sazonalidade, o cuidado e o envolvimento com a natureza.
Remontar uma cadeia produtiva, desde a matéria prima (lã de carneiro) até a venda final, está sendo um desafio para mim, não só administrativo, mas também sócio emocional, que tem me ensinado muitas coisas sobre as dificuldades de alinhar natureza, justiça social e saúde com o sistema econômico capitalista em que vivemos. O processo de resgate da cadeia produtiva da lã a partir do primeiro produto que desenvolvemos – um edredom de lã – foi desenvolvido da seguinte maneira: (1) entender onde tem ovelhas mais perto de nós e o período da tosa, (2) ir com as crianças de ônibus escolar ver a tosa da lã, (3) trazer a lã para o nosso bairro, (4) entender quem quer lavar, desfiar, cardar a lã e costurar o edredom, (5) entender em assembleia qual deve ser o valor do trabalho de cada uma (6), comprar os tecidos do edredom em São Paulo, (7) aprender a fazer o edredom com uma mestra de ofício local (Maria Silva), (8) fazer uma vaquinha entre as cooperadas para pagar as aulas da mestra, (9) finalizar o primeiro produto, (10) calcular o valor total da venda de maneira cooperativa, justa e horizontal e (11) buscar compradores.
Seja a nível humano quanto administrativo é um grande desafio para uma artista com eu, sem nenhuma formação na área de empreendedorismo, tocar o início de uma cooperativa. Muitos erros e acertos aconteceram, até termos pessoas mais capacitadas para nos ajudar a montar o empreendimento. Diversas vezes mudamos o valor dos serviços porque, mesmo que tivesse sido escolhido em assembleia, alguma cooperada, por fim, não concordava com o valor escolhido. Portanto, refazemos constantemente as assembleias e reajustamos os valores sempre que necessário para que sejamos coerentes com o bem estar de cada uma das participantes e do coletivo.
Mesmo com todos estes processos, durante quase 2 anos as cooperadas continuavam dizendo que a cooperativa era da Lívia, ou seja: minha. Mesmo que eu e outras pessoas dissessem: “não, vocês todas são donas da cooperativa”, isso não estava evidente para elas. Algumas pessoas, olhando de fora, achavam que eu estava criando uma empresa para lucrar em cima delas. Mas a verdade era que eu estava fazendo um trabalho voluntário, servindo ao resgate de uma tradição muito amada na região e ainda tirando dinheiro do meu bolso para comprar equipamentos e pagar o trabalho de base sem saber se íamos vender e quanto desse valor investido retornaria para mim.
Até que um dia, logo depois de termos decididos certos valores em uma reunião, as meninas da cooperativa se juntaram espontaneamente sem mim na casa de uma delas e começaram a reclamar que a lã deveria ser pesada antes do serviço e não depois. A filha de uma delas, Lucimara Fonseca, que já havia participado dos processos do banco comunitário e vários outros movimentos da VAV, veio me avisar que elas estavam querendo parar de fazer o serviço e que, por mais que fosse muito mais justa a maneira como estávamos fazendo hoje em dia, elas estavam acostumadas a pesar a lã de uma outra maneira.
Convoquei, então, todas elas de novo para uma reunião e chamei a Lucimara para participar e me ajudar a entender a situação. Além de tudo, existe uma dificuldade real de comunicação por conta do sotaque, de traços de autismo de várias integrantes, da distância cultural minha e, por algumas serem semi analfabetas, existe muita dificuldade de lidar com números. Nesta reunião avaliamos de novo todos os combinados e valores. Concluímos que, mesmo calculando a inflação, o valor que elas ganhavam hoje em dia, era mais de 5 vezes maior do que elas ganhavam antes. Enfim, tanto para elas quanto para mim é um grande desafio calcular o valor final do produto, entretanto os processos são terapêuticos e são tão importantes quanto os resultados. Desenvolver a cooperativa da lã ao longo dos anos é um ritual de reciclagem das emoções. Por fim, conseguimos chegar num acordo e a cooperativa seguiu, desta vez mais confiante de que somos todas nós donas da cooperativa e que juntas decidimos os seus rumos.
Uma das experiências mais belas nos resgates de patrimônios imateriais promovidos pela VAV em Itamonte foi o florescimento artístico de Juliana Fonseca. Aos 52 anos ela voltou a tecer, um sonho que havia deixado na adolescência. A partir de seu desejo e com o apoio de sua mãe, Helena Fonseca, começamos a recuperar antigas ferramentas de tecelagem e a sonhar com uma cooperativa.
Helena criou 20 filhos no sítio onde moro atualmente e sempre ajudou quem precisava na comunidade. Ela é uma grande empreendedora orgânica, tendo coordenando por muitos anos a produção de lã na região. Até hoje vive num sítio de agricultura familiar onde produz (sem veneno): leite, manteiga, queijo, hortaliças, frutas, truta, etc. Juliana, criada nesse ambiente, trabalhou por muitos anos em serviços pesados e mal pagos para pessoas de fora. Quando vim morar no sítio, ela passou a me ajudar com as crianças e a casa, e essa relação transformou a minha vida, trazendo um profundo vínculo de apoio mútuo.
Como mãe e cuidadora do lar, reconheço o valor do trabalho doméstico, mesmo sabendo o quanto ele é desvalorizado, especialmente no Brasil. Juliana e eu estamos nos empoderando uma à outra, superando as limitações impostas pelas estruturas patriarcais e capitalistas. Com o apoio de sua família e da comunidade local, criamos ambientes de colaboração e cuidado.
Em 2023, quando passei 3 meses fora por conta do intercâmbio do doutorado no Chipre, incentivei Juliana a ficar trabalhando no meu atelier com a recomendação que não fizesse somente as mantas de lã tradicionais, mas liberasse a sua criatividade. Avisei que compraria toda a sua produção, independentemente de como saísse.
Durante a minha viagem, eu mandava imagens de tecelãs e tecidos que encontrava no caminho para ela. Numa das minhas andanças, conheci o atelier do artista italiano Gino Pelegrini (1941-2014). Seu fascinante atelier era cheio de teares, onde o artista tecia enfiando na urdidura galhos de árvore, arame farpado, tubos e materiais inusitados. Logo após mandar as imagens do atelier de Gino para a Juliana, tive um sonho em que a via muito idosa, mas logo em seguida ela aparecia linda, jovem e grávida. Juliana não pôde ter filhos, mas eu sabia que esta gravidez onírica significava outras coisas. No sonho eu dizia para meus filhos: “Teo e Kito, a Juliana nos ajudou, me ajudando a cuidar bem de vocês na infância, agora está na hora da gente ajudar ela”.
Quando voltei de viagem, me deparei com uma imagem que me fez chorar: meu atelier estava repleto de lindas obras de arte paridas por Juliana. Ela havia se revelado uma grande artista que, desde então, não parou de produzir coisas novas, criativas e incríveis. A despeito das pessoas em volta que a criticam dizendo que seu trabalho estava horrível, Juliana segue todas as tardes com uma produção de lã incrivelmente criativa, além de ter se tornado um dos principais pilares de sustentação da cooperativa. Da mesma forma que eu, durante o processo, as obras de Juliana parecem estranhas, mas quando terminam, percebemos que ela harmonizou a composição de uma maneira totalmente inusitada e própria. Um trabalho que não perde para nenhum artista famoso.
Juliana, além de artista, também se tornou a maior conselheira dos projetos desenvolvidos pela VAV no bairro. Por conhecer a história de todos os moradores e gostar de conversar sobre todos os assuntos que acontecem na região com todo mundo que encontra no caminho, ela traz diariamente para dentro da minha casa as notícias, as reclamações e os pontos que não estão funcionando nos projetos que organizo. É a partir desta e de outras escutas, que guio as ações que serão feitas cotidianamente, moldando o rumo das decisões.
Antes de terminar de escrever este estudo de caso, li ele para Juliana aprovar todas as palavras escritas. Acho importante trazer a minha relação com a Juliana, pois ao falar de economia, não podemos esquecer de mencionar o trabalho mais importante, que sustenta toda a cadeia produtiva do capitalismo: as mulheres que cuidam da casa e das crianças. Além disso, como Juliana e seu companheiro não tiveram filhos, meus filhos têm a oportunidade de ser meio filhos deles também, participando da criação das vacas, da produção do queijo e das hortas- oportunidade que eu jamais poderia oferecer para eles.
Em 2023, a cooperativa da lã foi convidada pela prefeitura para fazer uma exposição na Casa de Cultura de Itamonte. Todas as meninas da cooperativa foram buscadas de ônibus escolar fretado pela prefeitura e lá fizeram uma apresentação ao vivo de como funciona a cadeia produtiva da lã. Durante a exposição o jornal estadual da maior emissora de TV do Brasil (a rede Globo) fez uma matéria sobre a Cooperativa da lã, o que gerou grande comoção entre nós, pois nossa pequena cidade nunca participava deste programa.
Reportagem da globo sobre nossa 1º Exposição da lã https://globoplay.globo.com/v/12184477/
Depois dessa exposição, fomos convidadas em maio de 2024 para fazer um show room do nosso trabalho no evento Artes e Ofícios da Fazenda Roseta em Baependi, outra zona rural a cerca de 2h e meia do nosso bairro. Mais uma vez, a prefeitura fretou o ônibus da escola e desta vez mais de 30 pessoas do bairro foram para o evento – grupo composto sobretudo por idosos e crianças que quase não saem do bairro rural. Esta expedição tomou ares de aventura, curiosidade, excitação, gargalhadas e a frustração porque o ônibus da prefeitura deveria voltar poucas horas depois que chegamos.
O intercâmbio artístico com outros artesãos da região foi muito inspirador para as meninas da cooperativa. Por vezes, uma exposição local ou regional se torna mais eficaz para o do projeto do que uma exposição num museu importante de uma cidade longínqua. Entretanto, além destas exposições regionais, tenho levado peças da Cooperativa para São Paulo, o que tem gerado grande admiração e vendas por parte de pessoas que entendem de arte.
A exposição ou a matéria do jornal se torna, num projeto de arte comunitária, um dispositivo de comunicação, como outro qualquer, dentro da engrenagem do projeto. Afinal, o objetivo não está na exposição, mas no fortalecimento das subjetividades, da auto estima e a superação dos obstáculos sociais através do poder transformador da arte.
A cooperativa tem funcionado como um trabalho terapêutico tanto para as mulheres mais jovens como mais idosas. Dentro de um sistema cooperativista, as dificuldades de convivência precisam ser superadas para que o coletivo avance e isso em si já é um grande desafio. Nas palavras de Karlla Ássimos para o relatório do projeto Nascentes em julho de 2024:
“Este movimento é mais que só mexer ali com a lã. É superação, autoconhecimento, persistência. O que a Helene [professora] pede para a gente fazer é maravilhoso, porque faz cada uma ali olhar para si e o que está sentindo. E isso não tem preço. Eu vejo vários processos ali, muito ricos. Inclusive de curas.”
Coordenadora do projeto Mulheres rurais da montanha:
Lívia Moura (Fundadora do Ponto de cultura VAV)
O Projeto Nascentes Criativas é uma realização do Centro Comunitário Rural do Campo Redondo e Ministério da Cultura, com patrocínio da Valgroup por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura e apoio da Prefeituras de Itamonte, e do Ponto de Cultura VAV.
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